sexta-feira, 14 de agosto de 2009

COMUNIDADES APRENDENTES

Carlos Rodrigues Brandão

Palavras-chave: aprender; ensinar; ensinar-aprender; solidário; conhecimento; partilha; docência; conhecer; conhecimento partilhado; pesquisa participante; aprender-com-o-outro; solidariedade; co-responsabilidade.

Da turma de alunos à comunidade aprendente


Muitas vezes somos levados a pensar que ensinar e aprender é uma viagem de ida e volta que se passa em salas de aula, na escola. A escola é o lugar social da educação. Esta é uma idéia correta, mas não inteiramente. A educação que vivemos na escola, como estudantes, como professores, como as duas “coisas” ao mesmo tempo, é uma fração importante de nossoaprendizado, mas não única. A educação escolar é um momento de um processo múltiplo, de vários rostos e vivido entre diferentes momentos, a que costumamos dar o nome de socialização.

Alguns estudiosos do assunto sugerem mesmo que ao longo de nossas vidas vivemos pelo menos duas dimensões do acontecimento da socialização. Vivemos desde o momento de nosso nascimento (alguns dizem que desde a nossa concepção) uma longa, fecunda e complexa socialização primária.

É quando aprendemos conosco mesmos, com o lidar com o nosso corpo, atividade a que crianças pequeninas dedicam boa parte de seus dias. Aprendemos com o conviver com os mundos de nosso mundo. Aprendemos através de inúmeras e diferentes interações com nossa mãe, com nosso pai, com cada um e com os dois ao mesmo tempo. E com as outras pessoas de nossos círculos de vida: os outros integrantes da família nuclear, nossos parentes, vizinhos, amigos e tantos outros.

Ao longo de nossa vida – e não apenas durante a infância e a adolescência – convivemos em e entre diferentes grupos sociais. E dentro deles aprendemos: nossos grupos de idade (como uma “turma de amigos”), nossos grupos de interesse (como um time de futebol), nossas equipes de vida e de trabalho. Cada um deles aporta uma fração daquilo através do que, aos poucos e ao longo de toda a vida, nós nos socializamos. Nós aprendemos, em diferentes e integradas dimensões de nós mesmos, os diversos saberes, as sensações, as sensibilidades, os sentidos, os signiicados e as socialibidades que, juntas e em interação em nós e entre nós, nos tornam seres capazes deinteragir com uma cultura e em uma sociedade.

Quase todas as sociedades – a menos que uma delas seja uma pequena e muito simples tribo indígena - criam, transformam e preservam unidades sociais, ou instituições dedicadas especialmente a experiências mais motivadas e mais sistemáticas do ensinar-e-aprender. Elas respondem por nossa socialização secundária. Assim, aprendemos a lidar com uma dimensão da gramática da língua em casa, junto a nossos pais e outros, quando um dia começamos a falar. Mas quase sempre é na escola e sob os cuidados de uma proissional do ramo que aprendemos a lidar com outras dimensões de nossa língua: o ler e escrever.

Não somos quem somos, como seres humanos, porque somos racionais. Somos humanos e somos racionais porque somos aprendentes. Somos seres dependentes por completo do que aprendemos. Aprendemos bem mais do que os simples adestramentos dos animais com quem compartimos o planeta Terra. Aprendemos não apenas os saberes do mundo natural, mas a complexa teia de símbolos, de sentidos e de signiicados que constituem o mundo da cultura.

Quase tudo o que nós vivemos em nossas relações com outras pessoas ou mesmo com o nosso mundo, como no próprio contato direto com a natureza, pode ser, também, um momento de aprendizado. Podemos estar ou não conscientes disto, mas cada troca de palavras, cada troca de gestos, cada reciprocidade de saberes e de serviços com uma outra pessoa, costuma ser também um momento de aprendizagem.

De uma para a outra, as pessoas que se encontram, conversam, dialogam, deixam passar de si mesmos à outra algo de suas palavras, de suas idéias, de seus saberes, de suas sensibilidades. Querendo ou não (mas é melhor estar querendo) estamos, no conviver com outros e com o mundo, nos ensinando e aprendendo.

Acostumados ao mundo da escola, acabamos por imaginar que o processo formal da educação ao mesmo tempo aproxima e opõe uma pessoa-que-sabe-e-ensina e pessoas-que-não-sabem-e-aprendem. De algum modo é assim mesmo que se dá o ensinar-e-aprender. E o respeito que praticamente todas as culturas têm pela pessoa e pela igura do “mestre”, é bem uma imagem deste fato universal.

Mas, olhado de perto e de dentro, podemos pensar que ninguém ensina ninguém, porque o aprender é sempre um processo e é uma aventura interior e pessoal. Mas é verdade também que ninguém se educa sozinho, pois o que eu aprendo ao ler ou ao ouvir, provém de saberes e sentidos de outras com outras pessoas.

Conhecimentos, valores, teorias e receituários do “como fazer na prática”, estão permanentemente em luxo, sendo passados, transmitidos de uma pessoa a outra. E a própria idéia depessoa já é a de um organismo original e único, transformado pela socialização através de múltiplos momentos de aprendizagem. Pessoa: o ser humano capaz de conviver socialmente em um mundo interativo de cultura.

Temos o costume de imaginar que apenas pessoas treinadas para tanto são capazes de ensinar, de educar. Assim é de fato, em várias situações. Mas ao revermos a nossa própria vida passada e presente, nós nos damos conta de que não é sempre assim e nem bem assim. A começar por nossos pais e outras pessoas “mais velhas” da família, boa parte do que aprendemos nos começos de nossas vidas provém de pessoas que não izeram cursos especiais para serem os nossos primeiros educadores. E quando chegamos à escola e convivemos com pessoas especializadas em ensinar, já aprendemos uma imensa parte do que nos acompanhará ao longo de toda a vida.

Do lar ao círculo mais amplo de parentes e de vizinhos, deles aos pequenos grupos sociais em que vivemos a nossa vida de todos os dias, de um time de futebol a uma igreja, a uma equipe de trabalho, a uma outra, da associação de moradores do bairro, estamos sempre envolvidos em e participando de pequenas e médias comunidades de vida e de destino. De lazer, de vocação, de trabalho, de participação social. De conviver entre gestos que dão sentido à família, ao grupo, à equipe, mas que, cada um a seu modo, são também protagonistas de cenas e cenários do ensinar-e-aprender.

Ao lado da sala de aulas e da turma de alunos, vivemos situações pedagógicas em diferentes unidades de partilha da vida. Em cada uma delas e da interação entre todas elas é que ao longo de nossas vidas nós nos vemos às voltas com trocas de signiicados, de saberes, de valores, de idéias e de técnicas disto e daquilo.

Assim é que podemos chamar cada uma destas unidades de vida e de destino de comunidades aprendentes. Pares, grupos, equipes, instituições sociais de associação e partilha da vida. Lugares onde ao lado do que se faz como o motivo principal do grupo (jogar futebol, reunir-se para viver uma experiência religiosa, trabalhar em prol da melhoria da qualidade de vida no bairro, e assim por diante) as pessoas estão também inter-trocando saberes entre elas. Estão se ensinando e aprendendo.

Com o crescimento e a diversiicação das unidades de ação social, como as organizações não-governamentais, essa dimensão educativa pre- sente em qualquer uma delas, tornou-se cada vez mais clara e mais motivada. Algumas destas “agências de fazer e aprender” atuam no campo da própria educação, como os grupos e os movimentos de educação ambiental, ou as diferentes associações de pais e mestres.

Outras atuam na área da saúde, dos direitos humanos, da promoção e valorização do trabalho da mulher. Atuam no campo do cooperativismo, como uma cooperativa de produção de agricultura orgânica; atuam como um sindicato de classe, uma associação de moradores, uma comunidade eclesial de base a serviço de igreja, um movimento em favor da preservação do meio- ambiente ou, de maneira mais direta, de proteção do “mico leão-dourado”.

Ao lado daquilo a que elas se destinam por vocação direta, em todas elas existe também uma dimensão educativa. Tanto é assim que todas as pessoas que participam de uma ou algumas dessas unidades sociais de vida, de trabalho ou de ação social reconhecem sempre “o tanto que eu aprendi ali”.

Muito bem. Assim, ao lado das instituições sociais de educação formal, como uma escola municipal, um colégio estadual ou uma universidade federal, convivemos todos os dias e ao longo de toda a vida com várias comunidades de trabalho, de serviço de participação e de mútuo ensino- aprendizagem. Dentro e fora da escola estamos sempre envolvidos com diferentes tipos de comunidades aprendentes.

Estamos sempre, de um modo ou de outro, trabalhando em, con-vivendo com ou participando de unidades sociais de vida cotidiana onde pessoas aprendem ensinando e ensinam aprendendo. Pode bem ser que em algumas delas haja especialistas em ensinar - os diferentes tipos de educadoras e educadores - e não-especialistas que aprendem. Mesmo um time de futebol de bairro tem o seu técnico, e é de se esperar que ele saiba ensinar ao “time” os segredos do ofício.

No entanto, no interior de qualquer grupo humano que seja criado para viver ou fazer qualquer coisa, todas as pessoas que estão ali, são fontes originais de saber . Cada um dos integrantes de um grupo humano trabalha, convive e/ou participa, a partir e através daquilo que trás como os conhecimento, as sensibilidades e os sentidos de vida originados de suas experiências pessoais e interativas. E em cada uma ou um de nós elas são únicas e originais.

Conhecimentos, práticas e habilidades são diferentes uns dos outros, umas das outras, como os/as do servente de pedreiro, do pedreiro, do mestre de obras e do engenheiro. São diferentes, mas não são desiguais.

Nós nos acostumamos em ordenar e classiicar conhecimentos e culturas mais ou menos assim: “selvagens” e “civilizados”; “populares” e “eruditas”, “cultos” e “incultos”. No entanto, na realidade, cada “tipo cultural de saber” (como a de nossa religião, de nossa família, de nossa comunidade) e cada “unidade pessoal de saber” (como cada um de nós) cria, renova, guarda e comparte com os outros a partir de eixos e feixes de conhecimentos próprios. Saberes de pensamento e ação, signiicados do mundo e sentidos de vida vividos e pensados de uma forma única e criativa. Algo que, por isso mesmo, possui em si um valor não comparável com outros.

Como o foco de nossa conversa neste livro é a sustentabilidade e a co-responsabilidade social no que toca a questão ambiental, a partir dos cuidados do “lugar onde eu moro” e do “lugar onde nós vivemos”, podemos tomar este próprio campo de saberes e de ações sociais como um bom exemplo.

Tudo o que tem a ver com a natureza dos sistemas vivos e as suas interações entre eles e com o que existe em nosso planeta, tem sido estudado cientiicamente pela ecologia. Esta ciência praticada em universidades e em outros centros de saber, de educação e de ação ambiental em todo o mundo, deriva de um nome muito bonito: eco = oikos, uma palavra grega que signiica: casa. Logia é uma outra palavra de origem grega, que signiica “conhecimento”, “saber”.

Assim como biologia significa: o estudo da vida. Ecologia quer dizer, portanto: “o estudo da casa”. Qual casa? A nossa: o planeta Terra , sua natureza e a complexa interação entre os seres vivos, entre eles e com o todo do ambiente onde vivem e se reproduzem.

Ora, algumas pessoas pensam que todo o conhecimento válido e útil sobre os sistemas vivos e sobre as interações entre eles e o ambiente, provém da ecologia e de outras ciências ains. No entanto, anos, séculos, milênios antes do surgimento da “ecologia cientíica”, muitos outros povos, criadores de outras diferentes culturas, já geraram e aperfeiçoaram outras formas de pesquisa e de compreensão da vida, dos sistemas vivos (inclusive nós, seres humanos) e de suas relações com o ambiente, com a natureza.

Da mesma maneira e em uma escala mais próxima, sabemos hoje que quando temos pela frente o desaio de nos unirmos para pensar e praticar alguma ação social em favor dos direitos humanos, da qualidade de vida e da integridade do meio ambiente, o que cada pessoa e cada grupo de pessoas aporta tem o seu valor.

Há um conhecimento que é propriamente cientíico e provém de unidades sociais e de pessoas que estudaram para tornar coniável e proveitoso este conhecimento. Mas tão válido quanto este é o conhecimento e o modo de ver e agir de outras pessoas e de outras unidades sociais: as tradições populares dos agricultores e outras mulheres e homens ligados a diferentestipos de trabalhos com a terra; o saber dos artistas, dos artesãos, o saber dos nossos povos indígenas. E como nos temos voltado a eles em busca de respostas a perguntas que fazemos e que não conseguimos responder sozinhos!

Assim, ao lado de uma ecologia cientíica, podemos estender o nosso olhar e perceber por toda a parte uma variedade de outras ecologias. De outros sistemas culturais de saberes, valores e sensibilidades a respeito da natureza e das múltiplas maneiras como os seus elementos e seres vivos interagem e se relacionam. Quando pensamos criar uma agenda de princípios e de preceitos para o cuidado do meio ambiente, podemos partir também da idéia de que entre diferentes pessoas e grupos humanos existem e co-existem diversos sistemas de uma lógica da natureza e de uma ética do ambiente.

Tanto no momento de um trabalho participativo de produção de conhecimentos a respeito do meio ambiente em que vivemos a vida de todos os dias, quanto nos momentos de planejar ações e estabelecer procedimentos, nada enriquece mais o que se investiga, o que se sabe e compreende e o que se faz, do que a soma de diferentes contribuições. A integração entre diferentes experiências de vida, entre diversos modos de sentir e pensar.

Na gestão solidária e co-responsável de nossa casa comum de nossa oikos, que se estende do quintal de minha casa ao todo da Casa Terra onde vivemos, todos os conhecimentos que formam a sua logia – o seu saber sobre como cuidar da casa – são igualmente válidos e são proveitosos.


É por isto que sobretudo em trabalhos de educação ambiental, a dimensão da comunidade aprendente é tão essencial. Qualquer que seja o contexto em que se esteja vivendo uma experiência de educação ambiental, as pessoas que se reúnem em “círculos de experiências e de saberes”, possuem de qualquer maneira algo de seu, de próprio e de originalmente importante. E o trabalho é mais fecundo quando em uma comunidade aprendente, todos têm algo a ouvir e algo a dizer. Algo a aprender e algo a ensinar. Lugares de trocas e de reciprocidades de saberes, mas também de vidas e de afetos, onde a aula expositiva pode ser cada vez mais convertida no círculo de diálogos.

Alguns pesquisadores de pedagogia têm procurado mesmo compreender de uma outra maneira o próprio processo do ensinar-e-aprender. Podemos com eles partir da idéia de que a menor unidade do aprender nãoé cada pessoa, cada aluno, cada estudante tomado em sua individualidade. Ela é o grupo que se reúne frente à tarefa partilhada de criar solidariamente seus saberes. É a pequena comunidade aprendente, através da qual cada participante ativo vive o seu aprendizado pessoal.

Há uma idéia que poderia nos ajudar a encerrar estas relexões provisórias. Em geral pensamos que compreendemos algo quando incorporamos o que não era conhecido, compreendido e agora é. Esta é uma visão correta, mais limitada a respeito do ensinar-e-aprender. Na verdade, se tudo na vida são trocas e interações, conosco mesmos, com nossos outros, com a vida e com o mundo, se tudo são diálogos contínuos, múltiplos e crescentes, então na verdade conhecemos e compreendemos algo quando fazemos parte dos círculos de vida e de saber em que “aquilo” é compreendido.

Eis o que poderia ser uma nova concepção do viver como partilhar experiências, saberes e sensibilidades em situações e contexto regidos cada vez mais pela partilha, pela cooperação, ela solidariedade, pela gratuidade. Por tudo aquilo que sonha construir os caminhos em direção ao “mundo da vida”. O justo oposto de uma educação regida pelo individualismo, pela competição, pelo exercício do poder e pelo interesse utilitário que transforma pessoa em mercadoria e a própria vida em mercado.

Alguns conceitos para relexão:

Sustentabilidade - o modo solidário de relações entre o homem, a vida e o mundo. Solidariedade - o modo sustentável, generoso e co-responsável de as pessoas e os grupos humanos interagirem entre eles. Complexidade - um modo novo criativo, solidário e sustentável de as pessoas se relacionarem com o conhecimento, com a pesquisa, com a educação (no sentido Edgar Morin do termo) Criatividade - o modo inovador e integrativo dos três outros eixos de as pessoas se sentirem solidariamente co-reponsáveis pela criação contínua, cotidiana e históricas de suas vidas, de seus mundos sociais e de seus cenários naturais de vida e de trabalho.

retirado de: http://www.mma.gov.br/port/sdi/ea/og/pog/arqs/encontros.pdf

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